quinta-feira, 27 de abril de 2017



Na procura do dinheiro de Judas (2)

Tentar reconstruir uma história acerca do dinheiro que tenha sido objecto de troca na célebre traição de Judas, deveria, como trabalho de investigação, obedecer e respeitar certas características sobre o seu conceito e objectividade.
Em primeiro lugar exigirá o respeito pelo seu argumento histórico, e obviamente, uma comparação sobre as suas fontes, como forma da salvaguardar o melhor possível, tanto a sua fiabilidade, como a credibilidade, de que precisamos para corroborar os factos.
Infelizmente, neste caso, essa análise comparativa não será de todo possível, visto a sua génese, ter como único elemento de documentação, alguns legados evangélicos dos Apóstolos S. Marcos, S. Lucas, S. João e S. Mateus. Tudo o que realmente possuímos e sabemos sobre a traição de Judas, é-nos relatado por esses escritos bíblicos, e por isso também a análise terá de ser cautelosa e consciente, sobre a forma como o sentido místico em interpretações ulteriores, poderá ter tido influência e criado limitações quanto à veracidade dos factos.
Por tudo isto, nesta minha análise interpretativa deste “caso” histórico, pela sua forma intuitiva, torna-se mais empírica que científica.
Terá sido no ano19 d. C. no reinado do imperador Tibério que Jesus Cristo foi crucificado.
Nesse tempo, a Judeia era então uma província romana, e como tal nela se aplicariam as principais decisões que vinham de Roma. Seria portanto natural que a moeda principal que circulava fosse romana, ou provincial romana, embora se tenha conhecimento de que a algumas outras moedas fosse permitida a sua circulação, como o exemplo das moedas da dinastia de Heródes.
Na generalidade da literatura, argumenta-se que Judas terá recebido pelo préstimo da sua traição, trinta moedas de prata. Neste ponto creio que todos os historiadores convergem.
No meu ponto de vista, e para passar aos factos, pela característica que conhecemos hoje das moedas que então terão circulado, excluo as moedas de ouro como o”áureo”, o ”quinário” em prata, assim como os “sestércios”, “dupôndios” e “asses”, geralmente cunhados em bronze.
Interessante salientar contudo, que no reinado de Tibério, só foram cunhados dois tipos de “denário”(denário do latim denarius) em prata. Não havendo conhecimento de que tenha sido cunhado nenhum outro tipo de moeda em prata, durante o período deste imperador.

Tibério-Denário emitido no ano 14 d.C. em Lião (França) 3,78grs.)


O primeiro denário, cunhado no ano 14 d.C. em Lião, apresenta no anverso o busto do imperador Tibério com a legenda “TI CAESAR DIVI AVG F AVGVSTVS”. No reverso apresenta Lívia, (sua mãe) ou a Pax, sentada, com um ramo de oliveira na mão esquerda, e um bastão na mão direita, com a legenda “PONTIF MAXIM”. ( Há divergências acerca da  figura do reverso).
O segundo, terá sido cunhado no ano 16 d.C., e igualmente em Lião. Também este apresenta no anverso, o busto de Tibério, com a mesma legenda do primeiro. No reverso, apresenta o imperador conduzindo uma quadriga, com a legenda “TR POT XVII IMP VII”. O seu peso era variável, e valeria o equivalente a dez “asses”.
Temos então, que estas moedas circulariam em todo o império, aquando da morte de Jesus Cristo. E, poderíamos concluir, que qualquer destas moedas “denários”teria grandes probabilidades de ter servido de aliciamento no negócio que propuseram a Judas. Mas, porque não inclui-los também misturados com outras moedas, ou simplesmente um outro tipo de moeda em prata?
Alguns elementos substanciais transmitidos no legado dos quatro apóstolos servem para esclarecer algumas dúvidas sobre estas hipóteses.
Hoje, no nosso quotidiano, e na nossa cultura, utilizamos o termo “dinheiro”. Mas, na ligação que se lhe faz, quando se menciona este caso de Judas, a palavra “dinheiro”, terá evoluído, e colado na sua identificação popular, aparecendo o termo tanto na literatura, como no cinema, e em que usado desta forma, se estará a deformar uma realidade histórica.

Tibério-Denário emitido no ano 16 d.C. em Lião - 3,94grs.)


Nas sagradas escrituras, no que pesquisei, não vi mencionada a palavra “dinheiro”. Uma bíblia editada em 1859, que folheei numa biblioteca, foi-me bastante útil.
Dos quatro evangelistas que se referem a este caso, dois deles, S .Marcos e S. Lucas, afirmam que Judas vendeu Jesus, mas sem dar pormenores sobre o montante do negócio.
No evangelho de S. João, faz referência a trinta moedas de prata.
É contudo, S. Mateus que na sua narração, nos poderá esclarecer mais sobre este assunto.
Acusando o seu condiscípulo Judas, por este ter vendido o Mestre pela soma de trinta “siclos”de prata. Teria ele sido colector de impostos para falar desta maneira tão formal, no que se refere a “siclos”de prata?
Não encontrei nada, que me tenha dado indicação de que alguma vez se tenha usado a palavra “siclo” em referência  ao assunto que tratamos.
O termo “siclo” é conhecido como uma medida antiga, que equivalia a 6 gramas de prata.
Mas na narrativa de S.Mateus, também poderia ser a moeda de prata utilizada por fenícios e hebreus, que em hebraico era designado por “shekel”.
É pois muito provável que Judas tenha traído, e sido pago com 30 (trinta) “shekels” de prata.
Julgo que naquela época, o único tipo de moeda de 1 (um) shekel em prata que circulou na região tenha sido o “shekel” dito de Jerusalém (como nas moedas de Tiro).

Era uma moeda que pesava mais ou menos 14 a 15 gramas, e circulou em grande quantidade, tendo sido feitas várias cunhagens deste tipo de moeda. Uma delas foi precisamente no ano 33 d.C. O ano da suposta morte de Jesus Cristo? Aqui também existem muitas divergências, embora as datas que aparecem com mais frequência sejam entre os anos 30 e 33 d.C.
O “shekel de Jerusalém” em baixo retratado, apresenta no anverso o rosto do antigo deus Melkart, também conhecido por Baal, virado à direita, e no reverso apresenta uma águia virada à esquerda.

Judeia-Shequel de prata 14,27grs. cunhado em Jerusalém 12/11 a.C., ((  provavelmente terá servido de tributo a Judas)) A efígie de Melkart é totalmente diferente do shekel de Tiro).

Atendendo a que o preço de um escravo, naquela época, seria de 180 g de prata, poderemos calcular que Judas no negócio efectuado, teria vendido o Mestre por cerca de 4,250 Kg de prata.
Creio pois, ser o “shekel de Jerusalém” a mais provável moeda que procuramos identificar nesta história, pese embora o risco de decepcionar alguns coleccionadores que já possuam uma, ou as duas variantes do “denário” de Tibério, denominados por “dinheiro de Judas”.
Contudo, estes dois “denários” continuam a ser extremamente interessantes, quem sabe se não terão sido utilizados pelos soldados romanos que guardavam o sepulcro, enquanto jogavam aos dados sobre a túnica de Jesus Cristo, o que lhes confere sempre uma grande história.
O que lamentamos, é que ao longo dos tempos o conceito que nos parece mais plausível para esta história, por motivos menores, se tenha adulterado, e sobreposto ao texto original.
Dizer que Judas entregou Jesus Cristo por 30 dinheiros, sempre é mais cómodo que dizer, Judas entregou Jesus Cristo por 30 shekels.
Afirmar quais as moedas que pagaram a traição de Judas, é tarefa difícil, senão impossível.
Denários da época de Augusto? Dracmas, siclos, ou shekels?
Pouco provável é que tenha recebido denários de Tibério. Isto porque mesmo as cunhagens em grande quantidade, demoravam muito tempo a entrar em circulação, sobretudo nas províncias longínquas do império, como a Judeia onde circulavam muitos tipos de moeda.
Esta questão, levantou-se na Idade Média, e foi proposto ou entendido pelos dirigentes eclesiásticos da época, que a moeda representativa desse facto histórico deveria ser uma moeda que representava Cristo com uma coroa de espinhos. De facto existe um “dracma”de Rodes que representa o deus Hélios ( na mitologia associado ao Sol), com a cabeça adornada com raios, parecendo Jesus Cristo com a coroa de espinhos. Essas moedas, foram na época alvo de uma grande devoção.

6 Cária-Rodes, Dracma 175-170 a.C.

 Porque razão Judas traíu Cristo?

Durante séculos, este personagem tem fascinado teólogos, artistas, intelectuais, que se interrogam motivo que o levou a cometer este crime, e avançam com algumas hipóteses.


Judas Iscariote (ou Iscariot ou Iscarioth) foi segundo a tradição cristã, um dos doze apóstolos de Jesus de Nazaré.
Segundo os evangelhos canônicos, Judas facilitou a prisão de Jesus por internédio dos  sumos sacerdotes de Jerusalém, que em seguida o entregaram a Ponce Pilatos.

A figura “evanescente” deste personagem é motivo de muita controvérsia na historiografia cristã, a sua autenticidade permanece muito frágil e levanta dúvidas sobre uma parcela significativa das críticas.
 
Bandido ou revolucionário?
O cristianismo baseado no evangelho de João, fez de Judas um vulgar criminoso atraído pelo dinheiro fácil, que entregou o mestre por algumas moedas.
Mas, esta hipótese é muito contestada:  a quantia oferecida a Judas  pelos romanos  (trinta denários ?) é insignificante,  porque Judas enquanto tesoureiro dos apóstolos tinha oportunidade de se apropriar importâncias  mais elevadas. 



“O seu nome Iscariotes, também faz pensar que era, ou foi membro dos sicários, judeus “zelotes” que defendiam a rebelião armada contra os romanos.
Finalmente decepcionado por Jesus um Messias muito pacifista, terá motivado Judas a cometer a sua traição.

Todavia, a influência dos sicários parece ser posterior à morte de Jesus.
No entanto, a pista de um conflito, uma  incompatibilidade ideológica entre um dirigente idealista e Judas, continua a ser possível.

(Sicário :(em latin sicarius) - “homem da adaga”, é um termo aplicado nas décadas imediatamente precedentes à destruição de Jerusalém no ano 70, para definir um grupo extremista separatista de zelotas judeus que tentavam expulsar os romanos e seus simpatizantes da Judeia.
Os sicários utilizavam a “sica”, termo latino para um tipo de adaga pequena que escondiam nos seus mantos).

Aquando de reuniões públicas, eles sacavam estas adagas para atacar os romanos ou judeus simpatizantes, se misturando depois à multidão para se escaparem.
Os sicários foram um dos primeiros grupos organizados cujo objetivo era a realização de assassinatos, muito antes dos assassinos  do Oriente Médo e dos ninjas japoneses.



Judas, um traidor necessário?
Antes do reaparecimento do Evangelho de Judas, a teologia já tinha avançado com a possibilidade de um “traidor messiânico”, sacrificado para que se realizasse o destino de Jesus.
Efetivamente, sem Judas não teria havido cruxificação nem ressurreição.
A questão da punição divina reservada a Judas e, uma possível indulgência tem sido um assunto de muitas divergências nos debates teológicos.
O olhar, (ou por outras palavras  direi o julgamento do cristão),  sobre este personagem amaldiçoado, passou a ser mais indulgente a partir século XIX.

O Novo Testamento, dá-nos duas versões diferentes sobre a morte de Judas.
No Evangelho segundo São Mateus, Judas morre logo após a condenação de Jesus.
Este cheio de remorso foi ao encontro dos sacerdotes e anciãos e disse-lhes.
Pequei traindo um inocente.  Em seguida retirou-se , atirou com as moedas para o templo e enforcou-se. (Mateus 27,5 TOB).


Os atos dos Apóstolos (1,18) dão-os outra versão.
“Depois de adquirir um campo com o salário do seu crime, Judas caíu , quebrou pelo meio e, todas as suas entranhas se espalharam à sua volta.



Há dois mil anos, Judas Iscariotes entrou para a história por ter entregado Cristo a troco de algum dinheiro.
Todavia, o enigna referente à quantia e  identificação das moedas  que recebeu em troco da sua traição, ainda não foi desvendado.

Manuel Félix Geada Sousa


Bibliografia

André Paul ; La Bible avant la Bible : La grande révélation des manuscrists de la Mer Morte, éd. Cerf, Paris, 2 005.
James M. Robinson; Les secrets de Judas, Histoire de l’apôtre incompris et de son evangile- éd. Michel Lafon, 2 000.
Le Douzième Apôtre; Fac- Reflexion n°22, Fevereiro 1993, PP 14-26 (Le cas de Judas et la doctrine de la reprobation)
Centre Numismatique du Palais-V. S. O.  Paris 28-06-2002. 

Notas e referências

Mireille Hadas Lebel, Jerusalém contre Rome, éd. Cerf, Paris 1 990, p, 416-417.
Simon Claude Mimouni, La figure de Judas et les origines du christianisme : entre tradition et histoire, publié par Maddalena  Scopello, éd. Brill, Danvers, 2 008.
Simon Claude Mimouni, Le judaisme ancien du VI a.C., au III siècle d.C., éd. PUF,  2 012, p, 469.